RECORDAÇÕES DE DIONISIO
Por Dr.
Darcy Duarte Figueiredo
Ele residida junto com
José Neves Sobrino. Pedi-lhe então para escrever a José Neves, que eu iria
ocupar o lugar por ele deixado.
Despachei para Dionísio
duas caixas de madeira com livros e roupas, outra com apetrechos médicos e uma
estante para livros. Dr. Antonio Guerzoni havia deixado lá a mesa para exames
médicos, mesa esta que já havia encontrado na casa.

Casa onde morava José Neves,
a mesma que morou a Familia Ulhôa
durante muitos anos

Tomei um banho em um grande chuveiro de água
quente, aquecida por serpentina em fogão de lenha. Acabava de tomar um lanche preparado
por Sá Esméria, quando Zé de Vino, farmacêutico, chamou-me para examinar Nelson
Ulhôa.
Atendeu-me sua senhora, D.Irene, professora
culta e experiente. Abatida, enxugava as lágrimas. Ela havia anotado durante
uma semana, com linda caligrafia, pela manhã e a tarde, a temperatura e
pulsações do marido. Esta sua providência facilitou o diagnóstico. Depois de
examinar Nelson, diagnostiquei febre Tifóide.
No dia seguinte, alí
pelas dez horas, fui visitar Peraclyto Americano. Levava para ele uma carta de
apresentação do seu sobrinho Pedro, meu colega de turma e muito amigo.
Estendi-lhe a mão,
apresentei-me e, já assentados, ele leu a apresentação do Pedro. Deu então um
sorriso acolhedor, dizendo:
-
Estou às
ordens do Senhor.
-
Por favor,
trate-me de você.
-
Está bem;
e chamou a sua senhora:
-
Cocota!
Venha conhecer nosso novo médico; é colega de turma do Pedro.
-
Estou indo!
Demorou-se um pouco para atender à vaidade
feminina, e apareceu sorridente estendendo a mão.
-
Muito
prazer em conhecer o Senhor.
-
Por favor
trate-me por você.
Depois de alguns minutos de conversa apareceu um
cliente para Peráclyto e despedi-me.
Durante o tempo em que caminhei o pequeno
pedaço de rua até a minha casa, muitas pessoas me cumprimentaram. Já sabiam que
havia um novo médico em Dionísio e queriam me conhecer. Os dionisianos eram
abertos, simpáticos, e já me cativaram naquele primeiro dia.
Dionísio tinha tres elementos importantes para
o seu desenvolvimento: terra de ótima qualidade, seu povo, melhor ainda; e a
média cultura de sua população.
* * *
Quando cheguei em Dionísio, o povo andava
entusiasmado com o desejo de emancipar sua terra, abrangendo os distritos de
Goiabal, Juiraçu, Marliéria e Jaguaraçu com distritos. O motivo para a criação
de um novo município, era que São Domingos do Prata, formava-se de nove
distritos, incluindo o da sede. Era então impossível ao Prefeito, dar uma
assistência efetiva a todos eles e manter a necessária fiscalização das atividades
dos habitantes, e justa cobrança de impostos. Alguns destes distritos eram
distantes e de difícil acesso.
Achei impossível partir um município ao meio,
em uma revisão administrativa. O que acontecia nestas revisões, era elevar à
sede de municipio, os distritos que apresentassem certas condições: determinada
renda, população, e certo número de casas e eleitores. Comentei isto pela rua.
Mas o povo, já entusiasmado, não arrefeceu seu ânimo.
Eu residia em Dionísio a apenas um mes e uma
semana, quando houve a primeira reunião do Movimento Pró-emancipação de
Dionísio, a 7 de fevereiro de 1943. A convite do Coronel José Izidorio Garcia,
fiz a ata desta reunião como secretário interino, escrevendo a seguinte
introdução, para comprometer o povo com aquele movimento:
“Ata da primeira reunião do Movimento
Pró-emancipação de Dionísio, do município de São Domingos do Prata, realizada
na Casa do Teatro de Dionísio, aos sete dias do mes de fevereiro de um mil
novecentos e quarenta e tres.
Impelidos pelo desejo coletivo, elementos de
destaque da sociedade de Dionísio, distrito do município de São Domingos do
Prata, viram-se obrigados a convidar o povo, para se reunir na casa do Teatro
de Dionísio, às 14 horas do dia 7 de Fevereiro de 1943, a fim de que se
esclarecessem as aspirações deste povo.”
O teatro ficou cheio e pensei: estamos na
ditadura onde tudo é possível; depende só de padrinhos. Tive leve esperança na
criação do município com sede em Dionísio.
Redigi com entusiasmo o memorial, com muitas
fotografias, dirigido ao Governador Benedito Valadares. Memorial revisto pelo
Dr. José Matheus de Vasconcelos, dionisiano residente em São Domingos do Prata,
onde fora Prefeito eleito, mas que completados os quatro anos de mandato que
lhe foram outorgados pelos eleitores, ele pediu demissão do cargo. Não aceitava
permanecer Prefeito em regime ditatorial. Foi então nomeado Prefeito, o Dr.
Nelson Lelis Ferreira, filho do velho médico e político Dr. Edelberto Lelis
Ferreira. Dr. Nelson, elemento de confiança da ditadura, era naturalmente
contra o desejo dos dionisianos.
Nesta época, foi criado o municipio de Barão de
Cocais, antigo distrito de Santa Bárbara, então chamado São João do Morro
Grande.
* * *
Fiquei noivo a 23 de Setembro de 1944, em Santa
Bárbara, minha terra natal. Preocupava-me não haver uma casa para morar após o
casamento, pois, as boas casas de Dionísio eram habitadas por seus
proprietários.
Um dia, quando João Araújo Sobrinho, Peráclyto
Americano e eu, que éramos amigos confidentes, conversávamos quase à frente da
casa de Peráclyto, falei-lhes sobre a dificuldade, de encontrar uma casa para
alugar. João Araújo foi logo dizendo: - Vou dividir a baixada do meu pasto em
lotes e dar um lote a cada um de vocês, um junto do outro e em frente à minha
casa.
João Araújo era um mão aberta e fiquei
devendo-lhe muitos favores, inclusive hospedagens.
Peráclyto e eu nos calamos durante alguns
instantes, pegos pela surpresa. Peráclyto disse então: - Aceito por um preço
razoável. E, devagar, vou construir uma casa grande.
-
Não posso
aceitar nem de graça, pois não tenho condição para construir uma casa.
Passados alguns dias fui à Santa Bárbara matar
a saudade da noiva e cheguei até Belo Horizonte ver meus pais. Devo ter ficado
fora uns dez dias. Quando voltei, João Araújo entregou-me a escritura do lote,
já cercado com cerca de arame. E, dentro dele, peças de madeira de lei doadas
por Antonio de Pádua Martins da Costa (Tonico Moreira), e uma grande quantidade
de lajes de pedra.
Senti-me obrigado a construir a casa, pensando
em tomar um empréstimo bancário. João Araújo, querendo diminuir a grandeza de
sua bondade, disse a Peráclyto e a mim:
-
Construindo
aqui, vocês vão me ajudar a vender os lotes.
Como me recordo com saudade, destes dois amigos
e de tantos outros. João Araújo, como já disse, um mão aberta, e Peráclyto
Americano um homem prudente, inteligente, dotado de muitas habilidades que nada
tinham a ver com sua profissão. E qualquer movimento que surgia para algum
melhoramento de Dionísio, ele era um dos primeiros a apoiar e ajudar. A
primeira estrada de automóvel para Dionísio deve-se à sua pertinácia.
Tranquilo, prudente, algumas vezes aconselhei-me com ele a respeito de pessoas
e fatos.
Por aquela ocasião, a Belgo Mineira começou a
fabricar carvão em matas de Dionísio e Goiabal. Pagava-me um conto de Reis ao
mes, para prestar assistência médica aos empregados e familiares dos
empreiteiros que o fabricavam. Assim
consegui construir a casa sem tomar empréstimo.
Casa construída pelo Dr. Darcy Duarte Figueiredo, ao lado da casa grande, construida por Peráclyto Americano e que foi vendida à Belgo-Mineira para ser transformada no primeiro hospital do Município.
Casei-me a oito de Dezembro de 1945. Foram dois
casamentos na mesma hora: Dr Waldyr com Maria José (Pia), irmã de Francisca
(Cecy), com quem me casei.
Queríamos passar a lua de mel em Vitória ou no
Rio de Janeiro, mas ainda chocadas com a perda prematura do pai, o Sr. Arlindo
Ayres, nossas noivas preferiram ficar poucos dias em Belo Horizonte e passarem
mais dias junto aos seus. Então, depois de quatro dias em Belo Horizonte,
voltamos para Santa Bárbara.
Passados tres dias, recebi um telegram de
Orlando Américo (Landico), outro grande amigo: “Dois filhos meus com tifo, e
outras pessoas. Venha urgente, por favor.”
Sexta-feira, dia 14 de Dezembro, pegamos o trem
em Santa Bárbara, um automóvel em João Monlevade, que custou a vencer o Morro
do Peão, e chegamos à São Domingos do Prata. Aí dormimos em casa de minha tia
avó Modesta.

-
Bom dia
doutor, fizeram boa viagem ?
-
Evelyn!
Que tranquilidade você me dá. Até aqui sim.
Evelyn era um adolescente magro e muito educado, como eram os demais filhos de Peráclyto. A charrete tinha capota conversível e assento estofado. Ela ia à frente a passos e eu atrás, protegido pelo guarda-chuva e capa gaúcha.
Foram oito horas de viagem. No dia seguinte à
nossa chegada a Dionísio, um domingo, depois que fomos assistir a missa, quando
Cecy foi muito observada, começaram as visitas. Estavamos hospedados em casa do
João Araújo, pois nossos móveis não haviam chegado. A bondosa D.Clarisse,
sempre sorrindo, atendia a todos com amabilidade. Neguinha que cuidava das
minhas roupas foi cumprimentar Cecy e lhe disse:
- Quando a senhora passou em frente a Igreja,
vestida de preto com a cara bonita e triste, estava parecendo Nossa Senhora das
Dores.
Ela exprimiu bem o cansaço de Cecy, depois de
viagem tão estafante, à qual não estava habituada, com frequentes e inesperados
balanços da charrete.
Cecy ficou poucos meses em Dionísio, mas muito
comunicativa, chegou a fazer boas amizades. Estavamos felizes em Dionísio
quando inesperadamente, recebi uma carta do Padre Levi, vigário de Rio
Piracicaba. Dizia ele: - Estamos aqui reunidos em Monlevade, Dr. Parreiras, Rui
Rodrigues e eu. Concluimos que você, no momento, é o único que poderá trazer a
paz ao nosso município. Por favor, seja nosso duplo anjo salvador. Ele
referia-se à assistência médica e à administração da Prefeitura.
Não respondi logo a sua carta; necessitava
pensar muito, pois, fiquei em séria dúvida afetiva. Mas passados cinco dias,
Dr. Roberto Souza Dias, engenheiro da Belgo-Mineira em João Monlevade,
procurou-me em Goiabal, e pôs-me a par da situação conflitante do município e
da malversação da renda da Prefeitura.
Fiquei muito indeciso, mas, pesou o apelo do
Padre Levi, que, sem ser politico, era um verdadeiro pastor de almas. Suas
almas estavam sofrendo pela ação de poucos que se encontravam no poder. Pesou
também, porém, muito menos, o fato de Cecy ficar a apenas uma hora de trem de
Santa Bárbara.
Pelo interesse da Belgo-Mineira na região,
Dr.Roberto garantiu-me que Dionísio não ficaria sem médico e ele já estava
autorizado a comprar minha casa para sua moradia. Dr Walter preencheu a minha
falta.
* * *
As vezes o destino escreve certo por linhas
tortas. Na eleição estadual para o mandato de 1947-1950, conseguimos boa
votação para meu irmão Heli Duarte Figueiredo, principalmente nos municípios de
Rio Piracicaba e São Domingos do Prata, sobressaindo Dionísio. Ele foi eleito
deputado estadual e comprometeu-se a trabalhar pela emancipação de Dionísio.
Como técnico do Departamento de Assistencia aos
Municípios, da Secretaria do Interior e Justiça, ele era bem relacionado com os
deputados que procuravam aquele departamento em certa frequencia.
Parece que para a emancipação do municipio de
Dionísio houve certa dúvida a respeito da população, pois foram pedidos
registros de nascimentos em Dionísio.
São Domingos do Prata trabalhou ativamente
contra a emancipação de Dionísio, mas o município de Dionísio, foi criado pela
lei número 336, de 27 de Dezembro de 1948.
Passaram-se os anos e Heli formou-se em direito
em 1949, depois de haver iniciado o curso de engenharia que abandonou. Reeleito
para o mandato de 1951-1955, ele foi Secretário da Comissão Executiva da
Assembleia em 1951; Presidente da Comissão de Assuntos Municipais e
Interestaduais de 1952 a 1954; membro da Comissão Especial para Revisão da Lei
Orgânica Municipal em 1953; e da Comissão Especial de Divisão Administrativa e
Judiciaria, também em 1953.
Apesar do Prefeito de São Domingos do Prata ser
na ocasião, o Sr Felix de Castro, Dr Heli procurou o Dr Jose Matheus de
Vasconcelos, a quem já conhecia e por ter mais conhecimento sobre o assunto que
desejava tratar. Estabeleceu-se entre eles o seguinte diálogo:
- Dr.
Matheus é possível administrar bem São Domingos do Prata, com sete distritos,
não contando o da sede, com alguns deles distantes e de difícil acesso ?
- É
humanamente impossível. Os distritos ficam quase esquecidos e a arrecadação de
impostos é mínima.
Deputado Heli Duarte
Figueiredo

Recordei-me então do bom amigo Peráclyto,
quando meu irmão Heli contou-me em Monlevade, a conversa que tivera com Dr
Matheus. Dez anos antes, em 1943, em uma das reuniões do Movimento
Pró-emancipação de Dionísio, Peraclyto insistia justamente na impossibilidade
de administrar os nove distritos incluindo a sede. A lei deveria prever estes
casos, dizia ele.
Dr Heli perguntou novamente ao Dr, Matheus:
- Como você
vê a emancipação de Goiabal, Marliéria e Jaguaraçu?
- Muito bem.
Mas estes distritos não estão em condições de se emanciparem.
- Muito
provavelmente não, mas nesta revisão, ninguém está obedecendo a legislação a
respeito. O Presidente da Câmara está deixando o barco correr.
-
Se
conseguir a emancipação destes tres distritos, será muito bom. São Domingos do
Prata será mais bem administrado e sua renda aumentará. E os tres novos
municipios emancipados receberão do governo federal, a cota do Fundo de
Participação dos Municípios.
Deste rápido diálogo, foram criados os
municípios de Goiabal, Marliéria e Jaguaraçu, pela Lei n. 1039 de 12 de
Dezembro de 1953. Até hoje, esta foi a revisão que criou o maior número de
municípios. De lá para cá, tem havido mais severidade.
Belo Horizonte, 13 de Fevereiro de 2000
Observação:
O Deputado Heli Duarte Figueiredo, foi o responsável pela apresentação na Assembleia Estadual do projeto de lei para emancipação de Dionísio. Colaborou ativamente com os dionisianos na causa, já que o projeto havia sido rejeitado em duas ocasiões anteriores. Ele orientou os dionisianos sobre o que precisava ser feito para aprovação do projeto e aqui tem uma história muito interessante.
Que depoimento bonito e sincero. Vejo quanto era difícil a vida naqueles tempos e que, se um dia reclamei daquelas estradas tortuosas e que me davam muito enjôo por 2 horas, é por não ter conhecimento de fatos como estes, acontecidos até mesmo com um médico tão importante e de tão grande estima por todos. Parabéns, Fábio, por dar-nos a oportunidade de saber mais sobre a história destes, que fizeram de Dionísio a cidade tão adorada e acolhedora que é.
ResponderExcluirAdriana Lenoir Passos
Meu pai Júlio Duarte Lana primo de Dr.Darcy e de Dr Heli Duarte Figueiredo foi vereador nessa época.
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