segunda-feira, 17 de junho de 2019

SANTANA DO ALFIÉ - Paulino Cícero de Vasconcellos


     O Alfié é uma comunidade humana pequena, mas senhora antes e agora de uma vasta área territorial. E debaixo de seus telheiros se passaram muitas histórias. De suas terras nasceram as cidades de Dionísio, São José do Goiabal, Marliéria, Jaguaraçu e mesmo Timóteo, que experimentou pequeno passeio geográfico na jurisdição de Coronel Fabriciano. No princípio dos tempos, havia um conflito que não tinha inspirações políticas. Era a origem do nome a causa das discordâncias. Uns falavam que Alfié era forma sincopada de Alto e Frio. Alto e frio é, gerou Alfié, que chegou a Alfié. Muita montanha, fraldas do Espinhaço, tudo favorecendo a tese de que não abria mão a porção etílica da vila.       Outra versão, com mais densidade histórica, atribuía à vila no século passado o abrigo de uma balança destinada a cobrança do quinto do ouro. Assim, balança é fiel e o bateeiro do Rio Piracicaba dizia: “vamos ao fiel pesar os quintos”. É fácil aceitar que “ao fiel” tenha sido a matriz etimológica de Alfié. Do Alfié que celebramos. Isto para não falar no guardião fiel a seu dever no aquartelamento de Guy Thomas de Marlière, quando no século XIX, vindo da Europa, em fuga de Junot e das forças napoleônicas, o militar francês na expedição de Dom João VI, logo se tornou o Governador dos índios selvagens, botocudos e antropófagos do Rio Doce, estabelecendo ali um dos seus quartéis. Conta a lenda que diante de um ataque avassalador dos indígenas todos os membros do corpo militar caíram no mato – que ninguém é de ferro. Todos, menos um, o impoluto e fiel defensor e vigia da cidadela.


      Há trezentos anos, o desenho urbano da terra é o mesmo. Velhas casas coloniais, que se alinhavam a partir da Rua dos Moraes. Nada de luxo, que luxo lá não havia. Seguia-se um trato de via destinado ao comércio, culminando num pequeno largo, de onde saía a rua que passava pela porta da igreja e retornava á Rua dos Moraes. Calçamento com destinação imprecisa. Não era paralelepípedo, poliédrico não era também. Eram pequenos matacões de rocha ou algum bem mineral, que escassamente se ajustavam, mais servindo para evitar barro e lama onde as pessoas e animais passavam.

 

      
A pequena igreja de Santana é seu monumento mais significativo. Preserva com fidelidade o padrão colonial das igrejas mineiras e me lembra bem a igreja de Nossa Senhora da Praia do Ó, em Sabará.  À esquerda da nave existe uma porta que se abre para uma parte do adro e logo ali, bem pertinho uma enorme pedra de forma lamelar. Ela cobre o túmulo da minha avó, da Maria Constança de Moraes, mãe idolatrada de meu pai. Sempre que passava pela porta da igrejinha, debruçava os olhos sobre a improvisada lousa, fazia silenciosa prece para minha avó, perguntando-me em seguida: quantas missas terá celebrado no altar desta igreja o meu bisavô, Monsenhor Antônio Fernandes Lellis.

    

  Para ele Alfié era apenas a história de seus começos. Porque nascido em Santa Bárbara em 1.847, ordenado sacerdote no Caraça em 1.876, foi ao Alfié que o guiaram as ordens episcopais e seu senso de obediência. E logo entre os bons conselhos que distribuiu  estava a boa arte do matrimônio, que ele ensinava pacientemente, dia após dia, à já prometida noiva Lucinda de Assis Vasconcelos, bela jovem da Fazenda dos Assis.  E a família punha gosto naquela manifestação de dedicação paroquial, que se traduzia numa presença quase constante na fazenda. Eis que  Lucinda começa a ganhar novos ares, a engordar, a vestir-se com roupas mais  generosamente largas, a comprimir o abdômen, de tal sorte que, faltando perto de quinze dias para o nascimento do fruto proibido, ela se mudou para o moinho da propriedade, onde viveu escondida dos olhos dos pais e do mundo e onde nasceu o filho João Damasceno, meu avô, que João do Moinho ficou sendo, no trato futuro até com seus colegas de escola.

      Mas o Monsenhor não era homem do escondidinho. Queria as coisas às claras. Não foi por outra razão que ousou abandonar a batina, com grave risco de excomunhão, estabelecendo casa na rua, onde tiveram ele e Lucinda mais dois filhos: José Bebiano e Francisca Prisca. E ele trabalhava muito. .Além de atender outras paróquias nos tempos de sacerdote, foi duas vezes eleito vereador à Câmara de São Domingos do Prata. Trabalhou como tropeiro e em outros negócios que lhe permitissem alimentar a família e educar os filhos.


      Mas o homem põe e Deus dispõe. E muito do que ocorre na vida de cada qual é fruto de acontecências. Assim foi com o Monsenhor, que, certo dia, governava uma tropa de carga pelas trilhas da região, quando depara, inopinadamente, com um grupo de cavalarianos, também na trilha, sob as frondes de um capão de mato.


      Era o Arcebispo de Mariana, Dom Silvério Gomes Pimenta, em visita pastoral por sua jurisdição eclesiástica. “- que é isso, Lellis, você com barro até no peito. Você não precisa disso. Foi dos melhores alunos da turma e respeitado por sua firmeza e liderança”. Haviam sido amigos e colegas nos bancos do Seminário. E lhe sugeriu ir à Sé, procurá-lo em Mariana, que o enviaria a Roma para levantar seus interditos de excomunhão e obter a purificação de sua vida. Quando voltasse – disse-lhe na Sé – teria paróquias distantes dos sítios dos seus romances para evitar tentações futuras.


      Esta foi a sugestão e assim se procedeu. Em 1.903 vai a Roma, de onde tenho suas fotos de sobrepeliz tiradas na “Via Principe Amedeo”, número três. 

      Sua primeira designação foi para a paróquia de São José del Rey – hoje, Tiradentes em homenagem ao filho da terra e protomártir da independência. Quarenta anos atrás, fiz uma visita à terra e vejo que deixou na memória de algumas senhoras a imagem de Padre bravo e gritalhão. Lá sepultou seu segundo filho, Bebiano, que morreu solteiro aos 27 anos de idade. O meu avô, João Damasceno, já havia falecido aos 24 anos, de tuberculose, quando meu pai cumpria seu segundo mês de vida.  Chegando aos tempos de ginásio, meu pai é por ele internado no Colégio São Francisco da vizinha São João Del Rey.


      Depois o leva para a Academia de Comércio de Juiz de Fora. E, finalmente, quando se torna vigário de São Geraldo, na Mata Mineira, o avô e padrinho o interna no Colégio Viçosense, onde termina o ginásio e faz o curso pré-médico.


      O que vale lembrar é que seu auxílio foi permanente e sem reservas. Quando meu pai, às suas expensas, cursava o segundo ano de medicina em Belo Horizonte, recebe do Monsenhor – agora levado para a igreja do Carmo no Rio de Janeiro - uma carta em que falava no peso dos anos e nas espórtulas eclesiais que estavam minguando. Em suma, chega a sugerir-lhe uma mudança para o Rio, residindo na Casa Paroquial e lhe aliviando despesas de que não havia como fugir. Assim se explica a ida do jovem universitário José Matheus para a Faculdade Nacional de Medicina, na Praia Vermelha. E o mesmo fez com José de Assis Santiago, primogênito da filha Francisca Prisca, que foi aquinhoada com o “Santiago” no ato do esponsalício e que se tornou brilhante advogado e jurisconsulto em Minas.


      O Monsenhor nunca mais tornou ao Alfié. A terra continuava na mesmice de sempre, fazendo uma agricultura rudimentar e de subsistência, cortando e vendendo lenha de suas matas. De novidade o que apareceu na terra, no espaço de quase cem anos, foram três iniciativas rurais que se cobriram de sucesso. A primeira, no início do século passado, foi a implantação da Fazenda do Bicudo, onde o Dr. Raul de Caux implantou os Vinhedos do Alfié, chegando, em 1.916, a comparecer nos relatórios da Secretaria da Fazenda como o maior produtor de vinho de nosso estado, com direito a fotografia, que especulava detalhes das “fermes” francesas para cá transplantadas.

      A segunda, bem mais recente, foi a implantação da fábrica de cachaça Brasília, pelo Sr. João Cassimiro. Pinga – diga-se desde logo – digna dos arrepios da região, e que hoje se tornou privilégio dos etilistas do Vale do Aço. A terceira, mais ampla e bem mais florescente, foi a virada florestal, que teve como carro chefe a Florestas Rio Doce, cobrindo nossa geografia de eucaliptos e pinus e oportunidades de trabalho.


      Quando me ocorre lembrar da primeira visita que fiz a Alfié em companhia de meu pai um equipamento lá me impressionou profundamente. Era o sistema de abastecimento de água, que corria ao longo da Rua dos Moraes, pela banda dos quintais. Suportadas por uma centena de ganchos fincados ao solo, corria uma canalização feita de grossos bambus cortados ao meio, e aquilo ia correndo rua abaixo, de onde cada morador fazia a derivação de seu abastecimento, também, de bambu mais fino.


      Quando assumi a Prefeitura, fiquei com grave responsabilidade política. Eu tinha de reverter e precisava de qualquer forma de reverter o quadro político do distrito. É que lá, como em Ilhéus do Prata, dois de nossos seis distritos, eu sofrera uma acachapante derrota eleitoral. Meu pai certo dia, abatido com aquele resultado, lembrou-me de que lá apenas não nascera, mas dos dois meses de idade e orfandade até sua graduação aos 24 anos, lá fora sua terra, onde tivera muitos colegas na escola de seu avô e mestre Cristiano Moraes. Chegou a indagar-me se não seria mais prudente buscar a emancipação do distrito ou mesmo anexa-lo a outro município. Eu, então, lhe prometi que faria a reversão política da terra. Disse-lhe que as coisas iam mudar. Afinal, é do Alfié que vieram todos os outros municípios de nossa Comarca.


      A liderança política era sempre expressa pelo vereador Oswaldo Gomes da Silva, farmacêutico, parteiro, enfermeiro que gostava de fazer e sabia fazer política. Acho curioso lembrar que sua farmácia só trabalhava na manipulação. Não tinha medicamentos em estoque. E havia registrado um produto – o famoso Tempero Quitandinha – também manipulado na base não sei de que, e era um sucesso. Condividiam-lhe a liderança algumas figurar nobres da terra como José Cupertino, Guilherme e Lilica, Pedro e Dona Regina – todos da família Pimentel e, mais, Santos Vasconcelos com seu sogro José Gomes, o professor e músico Manuel Onésimo, Otávio Martins, Geraldo Coura, Pedro e José Domingues, Zé de Rosa e outros… Quando partiam numa direção era para lá que todos caminhavam.

Paulino Cícero com lideranças no Alfié em 1951

       Como se prestasse contas ou homenagens à terra das minhas origens, foi lá que inaugurei duas fases novas de minha vida: nas ruas do Alfié, bem ao lado da Igreja de Santana, minha primeira ação como advogado recém-formado. Também no distrito, no povoado de Bomtempo, a inauguração da primeira escola, como prefeito municipal.


      Como advogado fui chamado pelo Raimundo Papo para dirimir uma questão de lindes com o vizinho de lote. Onde passava a divisa dos dois lotes? – Esta era a questão. Levei comigo no jipe o Inhô Gomes, amigo e experimentado agrimensor.  A questão se cingia, realmente, à gigantesca dimensão de um bambuzal, que crescera para todos os lados e impedia definir divisas certas. Conversei muito com os litigantes, enquanto Inhô colocou o seu teodolito em operação e saiu com uma machadinha fazendo talhos nos bambus. Terminou dizendo: Aí estão suas divisas. Os desavindos se confraternizam e completa Raimundo Papo “eu chamei, eu tenho que pagar. Você vai receber um queijo, um cantante e um Santo Antônio de madeira, porque me disseram que Dona Célia gosta muito destas velharias de casa.”


      Passaram-se 55 anos até hoje. Não comi o queijo do Raimundo Papo, nem sacrifiquei qualquer cantante de seu obséquio e Santo Antônio, bem Santo Antônio continua no céu. Lá em casa ele não chegou. Mas triste termina a história. Poucos anos se passaram e em nova questão divisória, na localidade de Trindade, ele morre assassinado pelo vizinho, na presença do oficial de justiça.


      A escola que inaugurei era simples. Feita de pau-a-pique, toda pintadinha de branco e com bancos bem sumários. Comprei, antes de sair para a inauguração, 40 cadernos, 40 lápis escolares e um quilo de bala bem doce. O velho caminhão Ford, com 12 anos uso, especialista em transporte de lixo grosso e trazer os defuntos da roça, eu já o mandara à sede da vila para levar os seis membros da banda de música comandada por Manuel Onésimo. Entreguei o material didático à professora e fiquei sorvendo a alegria do povo, rodeado por todas as figuras gradas da terra. Até hoje não entendo porque a banda ao invés de executar o hino nacional, resolveu atacar o hino à bandeira. “Salve lindo pendão da esperança...” Alturas tantas, o improvisado coral não sabia o texto da música e começou a cantar o estribilho repetindo-o com a solidariedade da banda de música. Aí ocorre o inesperado. A professora, cantando o estribilho, sobe os três degraus, desfaz o nó da fita verde e amarelo, roda a chave, e traz lá de dentro um dos cadernos em cujo verso se inscrevia o hino à bandeira. Do alto da escada, localizada a matéria, dá o comando e todos acabamos com muitas palmas cantando a peça completa. Havia muita alegria. Houve muito discurso e declamações. Seguiu-se a carne cozida com farinha do vereador Oswaldo servida a todos com generosas doses de Brasília, em cuja fila não faltaram as crianças estimuladas pelas mães. Era o começo da virada.


      Sempre gostei muito do Alfié e de sua gente. Cansado, lá era meu refúgio. Quando passou a eleição de l.962, que foi a primeira virada e eu me elegera deputado estadual, retornei à Prefeitura após o pleito e ela estava em frangalhos financeiros. Eu estava eleito, mas eram cobradores demais e o Alfié era meu refúgio. Lá para o Bar do Zé de Rosa, velho companheiro, relaxava com uma boa linguiça assada e a generosa Brasília. Ou jogava uma partida de sinuca. Ou era a casa do Zé Domingues, às vezes com direito à banda de música, enquanto éramos regalados com porções generosas de jiló à Alfié.


      Fizemos muitas coisas boas em Alfié. Melhoramos suas estradas, até de as de cavaleiro. Integramos o distrito na rede da Cemig e instituímos na época o curso ginasial. Como esquecer, por exemplo, que foi num baile de sete de setembro, com direito ao Lumumba, dos Cantores de Ébano, que lancei a candidatura de Antônio Guido Rolla a Prefeito do Prata, onde realizou a mais ampla, geral e irrestrita ação administrativa, que minha geração testemunhou? E o Padre José Índio, meu primo querido, que chegou à paróquia e se incorporou à nossa roda, condividiu nossos copos, e de lá, como a dizer que a história se repete, de lá saiu para o mundo, casado com a Zenaide do Sr. Otávio, e, nos braços, uma linda filha nos seus primeiros anos de vida.


     Velhos e bons tempos!


Paulino Cícero de Vasconcellos
Do livro MEUS CADERNOS - De São Domingos do Prata a Brasília









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